Arte: Ivanice Stempozeckas
Suor, Sangue e Aço
De Luiz Ronchi Risso
Ano de 1190, Península Itálica, durante a Terceira Cruzada.
O
cheiro da primavera pairava adocicado pelos morros verdes de Colline
della Pace. O vento cortava os bosques, varria a grama e trazia consigo o
aroma das flores que desabrochavam.
Sobre
uma encosta, de onde se via a linha azul do mar no horizonte, uma menina e um
homem estavam sentados ao sol, recebendo em seus cabelos o vento marítimo que
vinha em lufadas.
A
menina, que não devia ter mais do que dez anos de idade, era delicada, meiga.
Seus cabelos eram loiros, presos por fitas verdes no mesmo tom da grama que a
cercava, seu vestido branco era cheio de bordados, fazendo-a parecer uma boneca
de porcelana.
—
Espero que papai volte logo... — a criança suspirou, com suas pernas balançando
na encosta.
Os
bosques abaixo se estendiam até onde a visão alcançava. O dia cintilava com
suas nuvens empurradas pela brisa.
—
Ele vai voltar em breve. Já faz dois dias, com certeza deve estar a caminho — disse
o homem que estava sentado ao lado da garota, com os olhos castanhos lançados no
horizonte longínquo. Pensativo, os cabelos pretos dele sacudiam, a postura
nunca parecia relaxar.
O
rapaz trajava uma túnica negra que cobria seu torso robusto, amarrada
firmemente por um cinturão, e de onde pendia uma espada embainhada. A túnica
exibia uma cruz branca em seu centro: a cruz da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários.
A
garota não podia ver que o cavaleiro inglês estava com aquele semblante
pensativo, mas sentia aquilo, como se a brisa lhe contasse. Cega desde o
nascimento, Vittoria tinha uma saúde frágil, seus olhos eram profundamente
claros.
—
Kendrick... — ela falou com sua voz fina, mas que tinha um tom muito maduro
para sua idade. — O dia está bonito hoje?
—
Sim. Muito bonito — o cavaleiro deu um sorriso fraco. Sentia um aperto no peito
quando conversava com Vittoria, por saber que ela nunca poderia vislumbrar
aquele cenário magnífico. Tinha tão pouca idade, era tão tímida e calada, contudo,
tão independente apesar de sua condição. Desde que chegou ao Convento da Paz,
que ficava naquelas colinas, Kendrick nunca viu Vittoria sorrir, nem ao menos
uma vez.
O
hospitalário gostaria de poder fazer algo por ela. Mas a doença da garota
estava muito além de qualquer cura pelos meios da medicina dominada pelo rapaz.
—
Você tem mesmo que ir embora? — a menina perguntou.
—
Eu preciso continuar a minha jornada, sinto que alguma coisa me chama. Desde
que deixei a Inglaterra, noto cada dia mais que não conheço o mundo como achava
que conhecia. O juramento que fiz me levará muito longe e está envolvendo mais
pessoas do que eu imaginava. Ah, mas o que estou dizendo? Isso tudo é muito
complicado... — Kendrick coçou a nuca, constrangido por falar daquelas coisas
de adulto com uma garota tão inocente. — Não quero que se preocupe com isso, pequena!
Apenas sinto muito que seu pai tenha decidido ir comigo, apesar dos meus
conselhos. Ele parece ser tão teimoso quanto eu.
—
Papai é grato pelo que fez por ele. Ele me contou tudo — Vittoria murmurou. — Ele
vai ficar bem com você! Ele também procura alguma coisa. Alguma coisa que não
consegue achar aqui.
Ainda
que ela tentasse esconder, uma tristeza transbordava de seus pequenos lábios:
—
Eu vou ficar bem, as freiras vão cuidar de mim.
—
Eu... eu prometo que... — o cavaleiro de túnica preta tentou ensaiar um novo
juramento, mas logo foi interrompido pela garota:
—
Não precisa prometer que vai trazer ele de volta! Eu sei que você vai. É pra
isso que os cavaleiros servem, não é?
—
Você só tem que se preocupar em crescer e continuar sendo uma boa menina! Bem
desse jeito que você é — brincou o jovem, acariciando a cabeça loira da garota.
— O resto quero que deixe comigo.
Vittoria
não disse nada, ficou de pé e parou na frente de Kendrick. Suas mãozinhas
tocaram os ombros do hospitalário, cobertos pela espessa malha-de-aço.
—
Nunca gostei — ela sussurrou. — Nunca gostei de armaduras. Sempre me contaram histórias
de cavaleiros de armadura que salvavam princesas. Mas toda vez que papai vestiu
uma, foi pra fazer coisas erradas! Coisas que faziam ele chorar depois.
Vittoria
ficou calada por um instante, e um vento mais forte soprou:
—
Acho que ele fazia aquelas coisas por minha causa. Eu sei que ele pensa que eu
nunca soube, mas... eu ouvia, eu ouvia ele chorar escondido.
Ela
suspirou:
—
Você tem o mesmo cheiro que ele.
Sentado
na grama, Kendrick fitou os olhos cegos de Vittoria.
A
garota começou a tatear o rosto do homem, para saber como ele era. Percebeu que
o inglês tinha o queixo quadrado sem barba, face simétrica e que possuía uma
falha na sobrancelha direita.
Enquanto
o toque gentil lhe percorria o rosto, o hospitalário pensou nos sacrifícios que
seu amigo Niccolo havia feito para criar e manter escondida a garota. O genovês
havia trabalhado para os mais desumanos patrões e participado de um exército
mercenário para custear as sangrias, as ervas medicinais e os tratamentos de
sua filha: na vã esperança de prolongar a vida dela.
Por
fim, assassinou um velho barão em troca de uma recompensa, fato o que o jogou
nas masmorras e nas mãos da morte. Se não fosse por Kendrick, talvez o besteiro
italiano não tivesse jamais a chance de ver sua filha de novo.
O
cavaleiro não conseguia imaginar que tipo de sentimento paternal poderia mover
um homem até tamanhas distâncias, nunca havia imaginado como seria ter filhos
ou família devido a sua vida severa. Mas achava aquele sentimento admirável, e
no fundo, ele também queria ter algo que pudesse proteger e lutar com a mesma
intensidade e devoção do amigo italiano.
—
Papai disse que você é forte — ela falou, quebrando os pensamentos de Kendrick.
— Escutei as irmãs do convento dizendo que você é um herói, que salvou papai e
muitas outras pessoas!
Definitivamente,
Kendrick achava que aquela descrição não combinava com ele. Contudo não quis
contrariar a garota meiga.
A
menina tirou a fita verde de uma de suas tranças e amarrou-a graciosamente no
pulso do hospitalário:
—
Por favor, lembra de mim! Algum dia, me conta tudo das suas viagens. Papai é bom,
cuida dele também...
Kendrick
fez que sim, ao dizer:
—
É claro! Eu vou protegê-lo. E quando eu voltar, contarei tudo sobre nossa
aventura. Retornarei aqui amanhã antes de partir.
Ele
se entristeceu, pois sabia que a menina gostaria de ouvir sobre os lugares e as
pessoas que nunca veria. A saúde frágil de Vittoria estava piorando, e todos os
médicos diziam que ela não atingiria a vida adulta.
Um
chamado ecoou do bosque que cercava aquela encosta: uma das freiras gritava o
nome de Vittoria. A irmã, trajada com hábito preto e branco, cumprimentou o
cavaleiro em um gesto de reverência:
—
Irmão Kendrick, que bom que está aqui! Insisto mais uma vez para que fique em
nosso convento esta noite! Temos quartos vagos e também suprimentos doados
pelos aldeões.
—
Eu lamento — o cavaleiro disse em tom educado. — Mas como sabe, meu amigo
dinamarquês desperta certo incômodo no retiro. Continuarei com ele na casa do
lenhador que nos abrigou. Não é longe, e voltaremos aqui para nos despedirmos
de Vittoria amanhã. Tenho certeza de que Niccolo irá querer isso.
A
freira assentiu para o hospitalário e deu as mãos à garota, que acenando, ia
voltando para o convento sob os cuidados da madre:
—
Até amanhã, Kendrick!
—
Até amanhã.
O
rapaz ficou ali, em pé, com a mão sobre o cabo da espada embainhada, observando
as duas figuras que partiam, até que sumissem em meio à trilha nos bosques
esverdeados.
—
Dizem que ela é fruto do pecado do italiano... — Uma voz austera se fez ouvida
por entre algumas árvores. — Se ele não tivesse se envolvido com uma mulher que
já era prometida a outro, a mãe da menina com certeza estaria viva e ela não
seria tão doente.
—
Isso não cabe a nós julgar, Thorkel — respondeu o hospitalário, ainda olhando
para a trilha. — E você pode dizer o que quiser, mas eu sei que gosta muito da
Vittoria. Ou acha que eu não o vi brincando com ela e a carregando em suas
costas enquanto estávamos no convento hoje de manhã? Vocês pareciam estar se
divertindo muito.
O
nórdico de longos cabelos loiros, encabulado, preferiu não encarar o
hospitalário. O dinamarquês era bem alto, estava revestido por uma armadura de
placas que deixava seus braços musculosos nus, possuía um machado afiado que
descansava em suas costas largas. Aquela expressão desconcertada destoava de
seu porte ameaçador.
Thorkel
estava vigilante, escondido na floresta o tempo todo, pois era paranoico quanto
à proteção de seu amigo, que assim como ele, parecia sempre atrair todo tipo de
problema.
—
Espero que Niccolo consiga o tal barco para nos levar até a próxima cidade! — resmungou
o guerreiro que agora saía de trás das árvores. — Dois dias e nada! Se aquele
genovês for da mesma laia que todos daqui, aposto que vai nos vender, ou pior!
Thorkel
não gostava daquela região que era tão diferente de suas montanhas gélidas. Não
conseguia se adaptar ao clima, sentia o cheiro da traição serpenteando pelas
vielas das cidades o tempo todo, via apenas o ouro reluzente nos olhares dos
comerciantes gananciosos. Para ele, toda aquela aparente civilidade local era
uma máscara que tentava esconder algum tipo de ardil.
Para
tornar a situação ainda mais complicada, o dinamarquês não entendia muito bem
aquela língua italiana que soava tão jocosa em seus ouvidos, e por conta disso,
metera-se em várias brigas em Gênova. Felizmente, Kendrick interveio em seu
favor para poupá-lo da forca da milícia genovesa, mas isso não impediu que o
nórdico desenvolvesse uma fama inoportuna devido aos vários homens que surrou.
Os
dois cruzados se viraram em direção ao mar no horizonte, e nuvens carregadas
agora vinham com o vento: uma tempestade começava a encobrir as luzes do sol, como
se fosse um mau augúrio da natureza.
—
Venha, meu amigo — comandou Kendrick. — Temos que fazer os últimos preparativos
antes que Niccolo chegue amanhã, partiremos para Reggio bem cedo.
—
Ainda não acredito que você vai realmente trazer aquele italiano conosco! — rosnou
Thorkel, contrariado. — E também não dá pra acreditar que tenha colocado a sua
vida em risco pela dele!
Lembrava-se
do incidente que os fez fugir de Gênova.
Após
mais resmungos do guerreiro dinamarquês, os dois amigos seguiram em direção à
trilha que adentrava nas florestas das colinas. Era possível ver a abóbada e as
torres do Convento Beneditino da Paz ao longe. Em determinado ponto, quando
desciam o caminho em direção ao sul, avistaram na distância a vasta cidade
portuária de Gênova — como um tapete de construções banhado pelo oceano
insondável.
Thorkel
cuspiu no chão. Kendrick meneou a cabeça num gesto de reprovação para com a
atitude do parceiro bravio.
Antes
que a tempestade começasse a desabar sobre suas cabeças, eles chegaram até a
casa de madeira do lenhador que os havia dado abrigo. Por ser um cavaleiro
hospitalário em uma cruzada até Jerusalém, Kendrick contava com apoios
fortuitos durante a jornada, já que muitos fiéis mais fervorosos queriam
alimentar e abrigar os guerreiros abençoados da cristandade durante sua missão.
Trovões,
que traziam mais do que uma tempestade, despertaram em Kendrick um incômodo,
como se algo de ruim estivesse para acontecer naquelas colinas.
Parte II
Arte: Ivanice Stempozeckas
Existia em Gênova a área inferior das docas, conhecida como Baixo Distrito, lugar onde a lei da milícia, que servia aos duques governantes, não conseguia alcançar.
Era
um poço de corrupção e ladroagem, onde mercadores que burlavam os impostos e
contrabandistas atuavam livremente. Contraventores, assassinos e fugitivos de
vários reinos mantinham qualquer cidadão bem-intencionado afastado.
Tavernas
à beira dos píeres, com cheiro de maresia e peixe passado, espalhavam-se com
suas janelas quebradas e iluminação de lamparinas enferrujadas. Bêbados e
arruaceiros entoavam canções rudes e brindavam com canecas metálicas, marinheiros
em busca de descanso e diversão agrupavam-se para fazer apostas e pequenos
navios sorrateiros iam e vinham na calada da noite.
Nesse
ambiente sórdido, sussurrava-se todo tipo de conspiração e planejamento
criminoso. A noite estava fria e tomada por ventos provocados pela tempestade
que se aproximava, balançando as velas dos barcos atracados e as placas de
madeira dos estabelecimentos.
Quatro
homens discutiam seus planos em uma das tavernas suspeitas: estavam sentados
rodeando uma mesa de carvalho cheia de canecas de cerveja barata. Eram guerreiros
caídos, que se esqueceram de seu orgulho e viviam rastejantes em sarjetas mal
iluminadas.
—
Não achei ele em lugar algum — queixava-se um homem magrelo, cujas vestes de
couro estavam bastante surradas. — O sujeito é mais escorregadio do que um
peixe! Depois que foi inocentado no ordálio presidido pelo bispo, desapareceu
como um peido no vento!
—
Tem certeza, Fulvio? — indagou outro homem soturno, um siciliano trajado em uma
túnica que um dia foi branca. — Ele não tem pra onde fugir, o grupo mercenário
pelo qual lutava foi desmantelado. Niccolo não tem apoio de ninguém na cidade,
nenhum barco o transportaria, e existem muitos que querem a cabeça dele...
—
Muitos. Como nós — completou um homem de armadura moldada em anéis, vestido por
uma capa escarlate gasta. Tinha um trejeito nobre e erudito de falar, seu
cavanhaque aparado e cabelos castanhos bem-cuidados mostravam que nem sempre
ele havia sido um fora-da-lei. Tinha caído de muito mais alto do que todos ali.
—
Mas signore Cesare, ele não está em lugar algum para ser
achado! — sussurrou o esquálido Fulvio, que como um coelho assustado olhava
para todas as direções, temendo ser ouvido. — Além do mais, dizem que aquele
cavaleiro negro e o dinamarquês troglodita ainda podem estar por perto! O
senhor viu que eles ajudaram Niccolo!
O
líder do bando, Cesare De Angelis, pertenceu a Famiglia Ducale, um
dos exércitos nobres de elite genovês. Sua desgraça foi súbita: assim que seu
senhor feudal foi assassinado, o ex-nobre se viu expulso de suas terras pelo
irmão mais novo de seu falecido senhorio, que o odiava por pelejas antigas.
Todos paravam de falar para ouvi-lo com reverência:
—
Não importa se o próprio diabo esteja contra nós, preciso destruir aquele
maldito! Niccolo tem que pagar pelo que fez. E vocês já estão sendo bem
recompensados para esta caçada. Portanto, nada de reclamações... eu elaborei um
plano.
Fulvio
e os dois irmãos sicilianos sabiam que, ao contrário deles, Cesare não queria
ouro, pois estava atrás de vingança. Seu senhor recebera uma seta entre os
olhos vinda da temível besta de Niccolo Vivarini, que era considerado o melhor
atirador do norte da península, e foi justamente esse fato que havia
desencadeado sua desgraça.
—
Ouvi dizer que você e Niccolo eram amigos... — comentou um dos capangas
sicilianos. — E que quando ainda eram nobres renomados, lutaram contra os
germânicos em Bolonha.
Para
Cesare, aquele parecia um passado distante como um sonho. O ex-nobre ajeitou
sobre o ombro sua capa surrada de estimação, lembrança da glória de outrora:
—
Sim, é verdade. Mas Niccolo caiu em desgraça sozinho, quando se envolveu com
Alessa, a mais bela do mediterrâneo. Uma mulher prometida para um príncipe
estrangeiro. Não satisfeito, o maldito tinha que me arrastar para sua ruína,
assassinando meu senhor por um punhado de moedas. Nem mesmo eu pude prever que
ele seria tão baixo. Tão desonrado. — Enfurecido, cerrou o punho sobre a mesa.
Cesare
não acreditava o quão severa havia sido sua queda, agora estava obrigado a se
aliar aos poucos homens que com ele desertaram e mais aqueles três infames
bandidos: Fulvio, um besteiro amedrontado de Veneza, cuja habilidade só não
superava sua covardia, e os irmãos Giacomo e Paolo, dois assassinos sedentos
por sangue, banidos da Sicília. Eram tão impuros que até o mar os regurgitou, e
os restos de seu barco naufragado os trouxeram para as costas de Gênova, onde
mais uma vez voltaram a delinquir.
Como
quem tentava apagar da mente as lembranças das glórias que não retornavam mais,
o nobre caído virou a caneca para encher sua garganta de cerveja.
Limpou
a boca com as costas da mão e disse:
—
Escutem bem, seus cães! Eu disse que tenho um plano, e iremos executá-lo esta
noite.
Curvou-se
sobre a mesa e começou a conspirar com os comparsas:
—
Subornei um mascate que viaja entre Gênova e Milão, e ele me contou do que
precisamos para atrair Niccolo para nossa emboscada... e essa isca está em um
convento em Colline della Pace.
Os
três criminosos ficaram impressionados como seu empregador ainda tinha contatos
e espiões em vários lugares.
—
Mas e quanto o cavaleiro inglês e o dinamarquês bárbaro? — perguntou Fulvio,
arregalado de medo ao se lembrar da fama dos dois.
—
Isso mesmo! Cadê eles? — disse Paolo, enquanto virava mais um gole. — Por Deus!
O cavaleiro negro colocou uma maçã na cabeça para que Niccolo atirasse nela com
a besta a vários metros de distância! O homem é abençoado e não teme a morte!
Sacrificou-se por um bandido que nem ao menos conhecia! Como ele podia ter
certeza de que Niccolo não erraria!? Não seria alguém com quem gostaria de ter
uma querela...
E
Giacomo emendou:
—
O tal dinamarquês abateu todos os homens da doca norte, quando...
—
Calem-se! — esbravejou Cesare, batendo com o punho na mesa. — Mandei meus
outros seis homens averiguarem. Os dois cruzados deixaram a cidade há dois
dias, e Niccolo não seguiu com eles. Portanto, não teremos empecilhos.
Logo
continuou, com ar determinado:
—
Fui amigo de Niccolo por muito tempo e sei por que o cavaleiro inglês se
colocou como alvo no ordálio. Ele decidiu participar do julgamento divino para
que o bispo não usasse a filha de Niccolo em seu lugar! Pois aquele era o
verdadeiro plano do bispo.
—
Filha!? — Fulvio se impressionou. — Aquele bastardo tem uma filha? Como ninguém
nunca ficou sabendo disso? Afinal ele nunca se casou...
—
Poucos sabem. Esse é um assunto delicado que até a mais alta nobreza preferiu
enterrar. Ela é fruto de um pecado que quase colocou alguns baronatos de Veneza
e Gênova em guerra anos atrás. O que só não ocorreu devido a uma intervenção do
Papa e um acordo entre os nobres.
E
explicou amargo:
—
O que importa é que o mascate me contou que ela está escondida sob os cuidados
das freiras beneditinas no Convento da Paz. Como não conseguimos localizar
Niccolo, teremos de usar esse último recurso para atraí-lo. Desesperado e sem
apoio, ele virá.... e morrerá na minha lâmina.
Os
outros três criminosos se entreolharam e em seguida gargalharam, divertindo-se
com o plano maquiavélico de seu senhor. Brindaram, entornando cerveja sobre a
mesa.
Enquanto
todos riam e gabavam-se das torturas que iriam fazer com o besteiro mercenário,
Cesare ficou calado, contemplando o fogo da lamparina. Nada dizia, pois
sentia-se o pior dos homens, sabia que ele mesmo jamais se perdoaria por tudo
que fizera desde sua queda, e que aquele ato final apenas selava a sua danação.
Tudo
que conseguia pensar era que ao menos executaria a sua vingança, e a garota,
cujo segredo ele havia jurado ao seu antigo amigo manter, não sairia ferida.
Era o que importava.
Estava
tudo planejado, Cesare sabia que poderia se deslocar com seus homens até o
convento que estava desprotegido, pois afinal, poucos seriam loucos o
suficiente para atacar um retiro cristão italiano, agora que Sua Santidade — o
Papa — estava residindo em Roma.
A tempestade, que começava a cair com seus trovões, encobriria seus rastros. Porém, não seria capaz de lavar seus pecados.
Parte III
Arte: Ivanice Stempozeckas
Kendrick
e Thorkel estavam sob o teto de um modesto celeiro, que ficava nos limites da
pequena propriedade de um lenhador genovês. Em meio aos barris cheios de grãos,
o dinamarquês estava deitado sobre a palha, fazendo suas orações noturnas.
O
hospitalário reparou que o nórdico, embora parecesse à primeira vista rude e
violento, sempre fazia suas preces com fervor e tinha grande apreço pelas
tradições cristãs. Era notório que os dinamarqueses haviam emergido após longo
tempo de seu estado pagão, e muitos dos homens dessa nação ainda mantinham
costumes bárbaros advindos de seus antepassados vikings, fato que
inspirava temor e superstição em seus inimigos.
O
cavaleiro sabia que seu companheiro de viagem não era diferente de seus pares,
e que tinha vindo de uma cidade muito distante, que ficava próximo ao que ele
chamava de "topo do mundo", onde tudo que havia era gelo e a palavra
cristã tinha chegado não fazia tanto tempo assim. Ele era fruto de uma mistura
selvagem de honra, dever e barbarismo. Aquele homem possuía um imenso coração,
apesar de seu aparente jeito grosseiro. Kendrick o admirava.
A
chuva e os raios da noite assustavam o cavalo de Kendrick, um robusto garanhão
negro que relinchava sem parar: estava amarrado em uma baia improvisada e
protegida. O rapaz acariciava a fronte do animal para acalmá-lo, enquanto
goteiras se formavam por entre as tábuas do teto e os trovões retumbavam no
exterior do celeiro.
Os
dois cruzados haviam barrado a porta por dentro com uma pequena carroça, e suas
armaduras e utensílios de viagem estavam empilhados em um canto sobre o feno. O
barulho da chuva tomava o ambiente e Kendrick continuava com a sensação de que
algo estava errado, aquele augúrio não lhe deixava dormir.
Bem
quando se acomodou sobre o assoalho para descansar, foi que ouviu um batido
forte na porta e uma voz feminina desesperada chamando seu nome:
—
Sir Kendrick! Sir Kendrick!
Os
dois guerreiros se colocaram de pé rapidamente e removeram a carroça que
emperrava a porta. As rodas rangeram e enfim a entrada foi desbarrada.
Viram
diante deles a freira que levou Vittoria de volta ao convento naquela tarde,
ensopada pela chuva e ofegante devido ao cansaço:
—
Irmão Kendrick! — arfou ela. — Mercenários armados! Eles... eles... acabaram de
invadir o convento!
—
O que ela disse!? — Thorkel perguntou com ansiedade, já que não entendia
direito aquela língua.
Enquanto
o cavaleiro tomava o cuidado de observar que a irmã não estava ferida, apenas
cansada e assustada, ele falou preocupado:
—
Thorkel, parece que estão atacando o convento! — E comandou: — Vamos até lá! E
Irmã, por favor, fique aqui.
Os
cruzados vestiram suas armaduras o mais rápido que puderam. O dinamarquês,
enquanto colocava seu machado nas costas, vociferava e xingava em sua língua
natal, com palavras que afrontavam o firmamento.
Kendrick
ficou silencioso, embainhou a espada e montou em seu cavalo, Thorkel subiu
atrás. A freira se apoiou ofegante na parede do celeiro e observou os dois
guerreiros galopando sob a tempestade noturna.
O
cavaleiro vencia os morros obscuros sobre as patas grossas do garanhão negro,
acompanhado de seu amigo nórdico. Poupou as rédeas, deixando que os raios
iluminassem ocasionalmente o caminho até o retiro.
Ao
finalmente chegarem aos portões derrubados, avistaram o convento tomado pelas
trevas em meio à chuva que dificultava a visão; de sua abóbada e de suas torres
escorria água e a escadaria branca estava tomada por destroços da porta
interna. Naquele momento, parecia um lugar desolado e mal-assombrado.
Desmontaram
e empunharam suas armas: Kendrick sua longa espada e escudo, Thorkel, seu
machado afiado. Adentraram no salão central se movendo com cautela. O tilintar
de suas armaduras molhadas ecoava pelos corredores vazios — todos do lugar
haviam fugido. Imagens e candelabros haviam sido derrubados, e até mesmo a cruz
de prata do altar foi roubada.
—
Blasfêmia! — vociferou o nórdico. — Que malditos fariam uma coisa dessas? Sua
Santidade, o Papa, não dorme muito longe daqui!
—
Eu não sei. Mas fique atento — disse o cavaleiro, que tinha fúria no olhar,
revelado por entre as duas fissuras de seu elmo fechado. — A tempestade calou o
barulho da invasão, e mesmo que as irmãs e os monges tenham corrido em direção à
cidade para buscar ajuda, a trilha até lá é longa. Este ataque foi muito bem
premeditado.
—
Eu vou mostrar os planos premeditados que tenho para esses malditos! — rosnou
Thorkel.
A
conversa dos cruzados foi interrompida por um eco vindo de um dos corredores,
que lembrava o de um objeto metálico caindo no chão. Eles se viraram empunhando
suas armas na direção do som.
Suas
visões lançaram-se em direção ao final de uma galeria, onde um homem encapuzado
foi revelado pela luminosidade repentina de um raio, que brilhou na tempestade
lá de fora. O sujeito tinha uma besta na mão e um saco de couro nas costas — de
onde caiu a cruz de prata roubada do altar. Foi justamente aquela peça que fez
o alarde ao tilintar no assoalho e denunciou o ladrão. Ele tentava se esgueirar
para fugir por uma janela.
Ao
ser surpreendido, o besteiro furtivo mirou a arma para Thorkel, e a ponta
maliciosa da seta engatilhada visou o peito do nórdico, e logo voou zunindo no
ar. Kendrick, por ato reflexo, jogou-se na frente de seu companheiro e
bloqueou-a com o escudo: o quadrelo fincou até a metade, revelando sua ponta do
outro lado da proteção.
O
bandido não teve tempo de atirar uma segunda vez, estava trêmulo e surpreso, e
bestas eram engenhocas demoradas para recarregar. O cavaleiro lançou-se com
velocidade na direção do larápio e talhou-lhe a fronte com um corte diagonal;
sangue lavou as paredes e a lâmina prateada, e o bandoleiro tombou esfacelado.
—
E ainda dizem que existe uma proibição papal sobre o uso de bestas contra
outros cristãos... — Kendrick comentou enraivecido, com a voz abafada pelo elmo
enquanto observava o quadrelo fincado no escudo. — Temos que achar Vittoria!
—
Parece que esses italianos gostam de usar essa arma profana! — reclamou
Thorkel, que não era tolo e sabia da praticidade e letalidade do armamento.
Tinha consciência de que se tivesse sido atingido, sua armadura poderia não lhe
salvar a vida da ponta perfurante da seta. — Do que adiantam todo esses
modernismos e riquezas, se eles não têm honra?
E
quebrou a besta caída ao chão com a sola da bota.
Vasculharam
o convento por inteiro, tudo indicava que os bandidos haviam ido embora e
aquele criminoso tombado era um último infeliz, que ficara para pilhar mais do
que devia.
Não
havia rastros de sangue nos aposentos e nos salões para alívio do cavaleiro,
não existiam sinais de batalha. Por fim, pregado atrás do altar, havia um
bilhete que foi achado por Thorkel.
—
Kendrick, aqui — disse o dinamarquês, entregando-lhe a carta. Ele admirava o
fato de o hospitalário ler, escrever e falar em seis línguas diferentes, não
entendia como aquele homem conseguia saber de tanta coisa e ao mesmo tempo
lutar tão bem.
Era
uma nota de duelo. Durante a procura no convento, Kendrick torceu para que
Vittoria estivesse a salvo, foragida com as freiras que já deveriam ter
atingido Gênova ou algum vilarejo próximo. Mas aquela não era a realidade e o
mau augúrio do cavaleiro provou-se verdadeiro: a carta explicava que a garota
havia sido levada pelos bandidos, e estes exigiam que Niccolo Vivarini se
dirigisse até um castelo abandonado ao norte da província, ou eles matariam sua
filha.
—
Maldição... — o hospitalário suspirou.
Os
dois cruzados saíram do convento deserto e voltaram até a entrada, pisando
sobre os portões caídos. De lá via-se a chuva castigar as colinas e as trilhas
abaixo. O breu era espesso, assim como as gotas que despencavam.
—
Niccolo só vai retornar amanhã — disse Kendrick, removendo seu elmo e a
malha-de-aço da cabeça. — Tenho certeza de que se decidirmos ir com ele até o
local indicado pela carta, será um massacre. Não apenas estaremos em
desvantagem numérica, como eles estarão prontos para nos receber. Será uma
armadilha infalível.
—
Por que não avisamos aqueles imprestáveis da guarda genovesa, hein?! — bradou
Thorkel, para fazer-se ouvido em meio aos trovões da noite. — O convento foi
atacado, até mesmo eles irão se revoltar com isso!
—
Esqueça – negativou o cavaleiro. — Niccolo foi banido de Gênova pelo
assassinato daquele barão, e só não foi morto porque o ordálio o livrou da
forca. Já corre grande risco por estar nas redondezas tentando garantir nossa
viagem até Reggio, e a menina era um segredo que quase ninguém conhecia.
Definitivamente, não podemos informar a milícia...
Os
dois ficaram em silêncio por um tempo, Kendrick olhou desalentado para a fita
verde amarrada na sua manopla:
—
Se conseguíssemos segui-los até seu covil... se ao menos eu não tivesse matado
aquele último bandoleiro... — arrependeu-se, chutando uma pedra que rolou morro
abaixo. — Talvez poderíamos ter extraído alguma informação dele!
Thorkel,
por sua vez, com seus cabelos longos e loiros ensopados, tocava a relva ao
redor da entrada com a ponta dos dedos. Andava de um lado para o outro, como um
lobo da floresta, procurando sinais dos bandidos fugitivos. Por mais que
detestasse admitir, daria sua vida para garantir a segurança da garota, e
aquele sequestro covarde pareceu atiçar ainda mais seus sentidos.
—
Thorkel... — murmurou o cavaleiro, trazendo pela rédea seu cavalo que tinha
ficado ali na entrada. — Eles agiram hoje de propósito. A tempestade encobriu
todos os rastros, só um milagre para achar alguma pegada nessa chuva toda!
O
nórdico não disse nada, e abaixou-se rapidamente por um instante, analisando o
solo, lembrando-se do tempo em que caçava ursos em meio às montanhas nevadas,
munido apenas de sua habilidade e uma lança de madeira.
Por
um bom tempo, ficou ajoelhado observando a relva.
O
hospitalário o olhava sem entender.
Em
seguida, o nórdico abriu um sorriso sanguinário, dizendo finalmente:
—
Esses cães... — Foram palavras pronunciadas por entre os dentes rangidos de
ódio: — Eles não sabem com quem estão lidando. Não se mandam cachorros
provocarem lobos!
Kendrick
compreendeu imediatamente o que seu amigo falava. Uma nova esperança brotou em
seu coração. Ele apertou o cabo da espada, ajustou-se na túnica molhada sobre a
malha de aço, e então um relâmpago iluminou a silhueta dos dois guerreiros.
—
Me siga! — disse Thorkel.
Os dois cruzados rumaram pelos bosques escurecidos, esmagando a lama sob suas botas. A obstinação agora guiava cada movimento deles.
Parte IV
Já
era madrugada alta e a tempestade continuava a cair sem dar sinais de que
pararia. Após seu bem-sucedido ataque ao convento, Cesare e seus homens
cavalgaram pelos bosques até seu esconderijo — um dos únicos casebres ainda de
pé do abandonado vilarejo de Acqua Gialla.
Lugarejo
que foi atingido por uma praga meses atrás. Todos os habitantes que não haviam
morrido, tinha fugido, e o local era considerado amaldiçoado. Uma fama oportuna
que o tornava perfeito para os fora-da-lei.
—
Amanhã partiremos para as ruínas do Castello di Nebbia — disse
Cesare para seus três infames bandidos. — Lá, no local marcado, o assassino
encontrará seu destino. Descansem bem! Meus outros homens estão de guarda pelos
destroços desta miserável vila e a milícia jamais nos achará nesta noite
tempestuosa.
Os
criminosos e a pequena Vittoria estavam alojados no sobrado aos pedaços,
repleto das mais variadas quinquilharias, frutos das pilhagens e do roubos de
caravanas. Suas tábuas fediam a mofo e a água que penetrava pelo teto apenas
aumentava a umidade do local, o chão era formado por madeira manchada e tochas iluminavam
doentias o lugar.
Fulvio,
Paolo e Giacomo acomodaram-se no feno jogado pelo pavimento, e mais uma vez,
começaram a beber, caçoando das faces assustadas das freiras do convento que
atacaram.
Cesare
De Angelis ficou ainda mais taciturno, consumido pela ansiedade. Pensou que
talvez seria hora de refazer sua vida, depois de executada sua vingança.
Vittoria
estava caída entre as pilhagens, como se mais um objeto roubado fosse: seus
vestidos brancos estavam sujos de lama e suas tranças loiras tinham sido
desfeitas pela chuva. Não estava amarrada, pois não representava nenhum perigo
de fuga. Aquele lugar fétido era para seu olfato sensível como estar dentro de
uma caverna pútrida cheia de morcegos. Ela ouvia vozes e tilintar de armas,
desesperava-se por não conseguir determinar o quão longe estava do convento.
Lágrimas escorriam de seus olhos cegos e suas tosses pioravam, pois tinha sido
exposta à chuva e ao vento enquanto era carregada rudemente pelos homens de
Cesare.
—
Onde está Fausto? — indagou Fulvio, paranoico como de costume. — Ele não havia
ficado para deixar o bilhete e coletar as pilhagens do último andar do retiro?
—
É, ele está demorando — replicou Paolo, afiando uma faca de açougueiro com uma
pedra. — O que pode ter acontecido?
O
siciliano sombrio foi interrompido pelas tosses cada vez mais altas da garota,
e o matador começou a ranger os dentes de irritação.
—
Essa garota é amaldiçoada! — praguejou Fulvio. — Vamos jogá-la no rio quando
terminarmos isso! Deixemos que ela envenene os peixes!
Paolo
cobriu-se com sua capa encardida para afastar o frio e se levantou. Foi até a
garota soluçante caída no chão, abaixou-se manuseando a faca reluzente e a
aproximou do rosto delicado da menina chorosa:
—
Talvez devêssemos deixá-la com algumas marcas... — Um sorriso maléfico se
manifestou em sua face. — Apenas para desesperar o pai ainda mais quando a vir.
Que tal?
O
siciliano apenas sentiu uma bota pesada chutar-lhe o rosto, fazendo com que
fosse lançado para trás violentamente. De seu nariz quebrado vazava sangue
grosso, e ele o tampou com a mão na vã tentativa de estancar o ferimento:
—
Maldição! Por que fez isso, meu signore?! — balbuciou o assassino
caído perante seu líder.
—
Vermes, se algum de vocês ousar tocá-la... — ameaçou Cesare, de pé, com a bota
direita manchada de rubro e de espada na mão. — Irão receber o julgamento
divino mais rápido do que imaginam.
Nenhum
dos três moveu um dedo, eles sabiam que o nobre caído era um veterano de
guerra, e que ele poderia facilmente abater todos ao mesmo tempo sem esforço.
Os
bandidos tentaram recompor-se do medo experimentado. E Cesare curvou-se para
analisar o estado da menina. Vittoria teve a impressão de que já tinha ouvido
aquela voz em algum lugar antes, mas ela não era tão ameaçadora e rude em suas
vagas lembranças.
Existia
para ela, em meio a todos aqueles odores fétidos, um cheiro muito familiar, que
era marcante o suficiente para que ficasse guardado no fundo de suas memórias.
Só que ainda não tinha certeza o que era.
O
ex-nobre tirou a luva e sentiu a testa de Vittoria com a palma da mão: ela
ardia em febre, fato que o deixou ainda mais perturbado. Em seguida, removeu
sua capa vermelha e envolveu a garota para mantê-la aquecida.
Os
olhos cegos de Vittoria se arregalaram, pois era a capa que exalava o cheiro
tão familiar. Aquelas peles de lebre, que formavam seu acolchoamento,
fizeram-lhe relembrar do tempo em que seu pai recebia visitas de um velho
amigo:
—
Tio Cesare! É você!? — a menina perguntou, soluçante de pavor e decepção.
O
coração de Cesare enrijeceu e o último de seus medos se tornou real: ele foi
reconhecido e teria que matar a garota assim que sua vingança se consumasse.
Era o pior pesadelo possível.
—
Isso tudo irá acabar logo, minha principessa — ele suspirou
pesaroso para Vittoria, tocando-lhe o queixo. Em seguida ordenou: — Fulvio!
Ordenei meus outros homens da patrulha para que reportassem aqui de tempos em
tempos, mas até agora eles não retornaram. Vá ver como eles estão!
—
Agora, senhor? — A voz do besteiro esquálido, de nariz adunco, era cheia de
receio.
—
Sim! Agora, seu tolo! — esbravejou Cesare. — Paolo e Giacomo, durmam! Amanhã
será um longo dia...
Parte V
Fulvio
deixou a casa reclamando, cobriu-se com um capuz grosso e saiu em meio à
tempestade da madrugada.
A
vila abandonada formava-se como um cenário sobrenatural para o covarde que
tentava captar cada detalhe ao redor: com suas casas quebradas e janelas que
balançavam aos ventos, ervas daninhas que cresciam invadindo as ruas de pedra, moinhos
de vento que rodavam fantasmais.
—
Ei! — chamava, cobrindo a boca com as mãos. — Onde estão vocês, seus patifes?!
A
voz do sujeito ecoava fraca em meio aos trovões.
Continuou
caminhando sobre a lama das ruelas, seguindo à procura dos outros empregados de
seu senhor. Até virar uma esquina e sem querer, chutar um objeto metálico que
estava jogado ao chão.
O
coração do criminoso quase parou e ele sentiu os pelos de sua nuca
arrepiarem-se por debaixo do capuz: ao ver que havia chutado um elmo
ensanguentado de um dos homens que buscava.
Mirou
seu olhar temeroso adiante, apenas para ver o último dos vigias rastejando
junto de uma pilha de cadáveres, tentando inutilmente evitar a pata grosseira
de um cavalo negro, que desceu subitamente sobre sua cabeça, esmagando seu
crânio.
Um
cavaleiro, agigantado perante a covardia do besteiro que o observava,
postava-se montado envolto pelas águas que caiam do céu. Um raio iluminou sua
silhueta escura: munida de armadura e elmo fechado, dos furos de seu capacete
vazava vapor devido ao frio da madrugada; em sua espada havia sangue fresco, e
a túnica preta o fazia parecer um dos Cavaleiros do Apocalipse, que ali estava
para anunciar o Juízo Final.
Fulvio
gritou desesperado e sacou sua besta. Mirou-a de forma trêmula lembrando-se de
que nem o quadrelo assassino de Niccolo conseguiu atingir aquele hospitalário
no ordálio. Disparou a seta quase às cegas, fazendo-a zunir longe de Kendrick,
que continuou imóvel, fitando enigmático seu adversário.
Aquilo
era demais para o covarde criminoso aguentar. Ele se virou para correr em
direção ao casebre, com o objetivo de avisar seu patrão, mas trombou no que
parecia ser uma muralha e foi ao chão lamacento.
Ao
olhar para cima, apenas pôde ver a figura de um nórdico enorme, com olhar azul
feroz, descendo seu machado afiado sobre seu torso, e partindo-o ruidosamente.
Mais sangue misturou-se as águas que escorriam pelas vielas imundas, e o ruído
de costelas sendo abertas reverberou.
Um
grito de agonia inominada espalhou-se pela vila assombrada.
Cesare,
Giacomo e Paolo se levantaram num pulo ao ouvir aquele horrendo som, e
prepararam-se como podiam.
—
Estejam prontos! Fiquem juntos, seja lá quem for não demorará para encontrar
esta casa! — ordenou Cesare, desembainhando sua lâmina e levantando um escudo
com brasão nobre apagado. Os dois irmãos sicilianos empunharam seu aço e
permaneceram imóveis.
Por
um tempo, que pareceu durar horas, mantiveram-se estáticos ouvindo apenas a
chuva, o cair das goteiras e os trovões. A tensão engrossava a atmosfera do
ambiente. Vittoria ficou ainda mais assustada e abraçou os próprios joelhos por
debaixo da capa escarlate que a cobria. Não conseguia imaginar o que estava
acontecendo, mas o grito de dor que ecoou parecia colado em seus ouvidos
aguçados.
O
silêncio se desfez quando a porta de carvalho do casebre foi ao chão com um só
golpe, revelando o hospitalário e o dinamarquês, ambos com suas armas lavadas
em sangue.
— Acabou — o cavaleiro deu a sentença.
Paolo
empunhava a faca de açougueiro, mas estava descrente na vitória, e ao ver a
morte de perto se lançou na direção da garota para colocar a lâmina em seu
pescoço, pois talvez assim, os cruzados desistissem de sua investida.
Como
um animal arisco, Thorkel percebeu o movimento do bandido e jogou-se para
interceptá-lo, desferiu um soco bruto com sua manopla, fazendo os dentes do
siciliano voarem junto a uma nuvem rubra. O assassino tombou com os lábios
destruídos e o pescoço quebrado; convulsionou por um momento e depois quedou-se
imóvel. Estava enfim morto. Seus olhos arregalados de pavor miravam o teto do
casebre.
Kendrick
encarou, através das duas cavidades de seu elmo, o homem que parecia ser o
líder. Havia na face do criminoso um semblante diferente de todos os bandidos
que matara até chegar naquela casa. Ele tinha uma nobreza em sua postura apesar
da armadura velha e da falta de polimento na espada desembainhada. O
hospitalário percebeu que o homem tinha alguma honra, mas não podia deixá-lo
viver.
Era
hora de terminar com tudo aquilo:
—
Thorkel, cuide do outro. O líder é meu.
Giacomo
enfureceu-se ao ver seu irmão tombado pelas mãos rudes do nórdico, e brandindo
sua espada por sobre a cabeça como um louco, tentou rasgar com golpes
sucessivos o oponente, que se esquivava da morte sibilante no ar úmido.
Kendrick
e Cesare correram como touros bravios, um em direção ao outro; os escudos se
bateram retumbantes e os braços dos dois oponentes se retesaram devido ao
choque.
Logo,
aço encontrava aço e os dois guerreiros se digladiavam destruindo as tábuas
podres das paredes ao redor. Fazendo com que as quinquilharias espalhadas
fossem esmagadas perante seus pés, que se moviam rápido para fazer seus corpos
saírem da direção dos cortes que assobiavam.
Thorkel,
ao ver a guarda aberta do siciliano espumante, que golpeava na tentativa de
eviscerá-lo, sussurrou apenas:
—
Vá pro Inferno...
E
cortou horizontalmente o pescoço de seu oponente com o pesado machado, fazendo
a cabeça cair dos ombros com uma feição dura e empalidecida. As paredes foram
banhadas e uma poça escarlate se formou no madeirame do chão.
O
cavaleiro ergueu sua espada preparando um golpe preciso, e Cesare, com seu
treinamento refinado, esperava aproveitar a abertura que aquele movimento iria
lhe proporcionar após apará-lo. Porém, a espada do ex-nobre inesperadamente
cedeu e quebrou-se diante do corte impelido pelo hospitalário, que lacerou o
ombro direito do italiano. Os anéis da armadura velha, tomados pelo carmesim
sanguíneo, desprenderam-se e tilintaram.
Cesare
caiu de joelhos, largando o escudo e os restos da espada, e sua última ação foi
lançar o olhar para a menina Vittoria, que ainda estava deitada enrolada em sua
capa. Agradeceu aos céus por ela estar a salvo.
Kendrick
percebeu aquele arrependimento do ex-nobre, fechou os olhos, e assim perfurou
com a espada o peito e o coração do oponente, dando-lhe a morte mais rápida que
pôde conceber. Tinha consciência que havia matado um igual naquela noite.
Fez-se
o silêncio e a tempestade lá fora se acalmou.
Os
dois cruzados correram sobre os corpos em direção a menina que chorava. Quando
se aproximou, Kendrick tirou o elmo e o jogou no chão. Viu Vittoria tentando se
levantar e tateando confusa, e ele a abraçou com toda a ternura que ainda lhe
restava na alma calejada.
Enquanto
nos braços acolhedores e armadurados do cavaleiro, lágrimas e mais lágrimas escorriam
dos olhos claros e fixos da garota.
Ela
nunca acreditou que estaria tão feliz em sentir novamente aquele cheiro que
tanto odiava: o cheiro misturado de suor, sangue e aço.
FIM