quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Conto (Ficção Medieval Histórica) - Suor, Sangue e Aço.

            Arte: Ivanice Stempozeckas 


Suor, Sangue e Aço


 De Luiz Ronchi Risso


Ano de 1190, Península Itálica, durante a Terceira Cruzada.

O cheiro da primavera pairava adocicado pelos morros verdes de Colline della Pace. O vento cortava os bosques, varria a grama e trazia consigo o aroma das flores que desabrochavam.

Sobre uma encosta, de onde se via a linha azul do mar no horizonte, uma menina e um homem estavam sentados ao sol, recebendo em seus cabelos o vento marítimo que vinha em lufadas.

A menina, que não devia ter mais do que dez anos de idade, era delicada, meiga. Seus cabelos eram loiros, presos por fitas verdes no mesmo tom da grama que a cercava, seu vestido branco era cheio de bordados, fazendo-a parecer uma boneca de porcelana.

— Espero que papai volte logo... — a criança suspirou, com suas pernas balançando na encosta.

Os bosques abaixo se estendiam até onde a visão alcançava. O dia cintilava com suas nuvens empurradas pela brisa.

— Ele vai voltar em breve. Já faz dois dias, com certeza deve estar a caminho — disse o homem que estava sentado ao lado da garota, com os olhos castanhos lançados no horizonte longínquo. Pensativo, os cabelos pretos dele sacudiam, a postura nunca parecia relaxar.

O rapaz trajava uma túnica negra que cobria seu torso robusto, amarrada firmemente por um cinturão, e de onde pendia uma espada embainhada. A túnica exibia uma cruz branca em seu centro: a cruz da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários.

A garota não podia ver que o cavaleiro inglês estava com aquele semblante pensativo, mas sentia aquilo, como se a brisa lhe contasse. Cega desde o nascimento, Vittoria tinha uma saúde frágil, seus olhos eram profundamente claros.

— Kendrick... — ela falou com sua voz fina, mas que tinha um tom muito maduro para sua idade. — O dia está bonito hoje?

— Sim. Muito bonito — o cavaleiro deu um sorriso fraco. Sentia um aperto no peito quando conversava com Vittoria, por saber que ela nunca poderia vislumbrar aquele cenário magnífico. Tinha tão pouca idade, era tão tímida e calada, contudo, tão independente apesar de sua condição. Desde que chegou ao Convento da Paz, que ficava naquelas colinas, Kendrick nunca viu Vittoria sorrir, nem ao menos uma vez.

O hospitalário gostaria de poder fazer algo por ela. Mas a doença da garota estava muito além de qualquer cura pelos meios da medicina dominada pelo rapaz.

— Você tem mesmo que ir embora? — a menina perguntou.

— Eu preciso continuar a minha jornada, sinto que alguma coisa me chama. Desde que deixei a Inglaterra, noto cada dia mais que não conheço o mundo como achava que conhecia. O juramento que fiz me levará muito longe e está envolvendo mais pessoas do que eu imaginava. Ah, mas o que estou dizendo? Isso tudo é muito complicado... — Kendrick coçou a nuca, constrangido por falar daquelas coisas de adulto com uma garota tão inocente. — Não quero que se preocupe com isso, pequena! Apenas sinto muito que seu pai tenha decidido ir comigo, apesar dos meus conselhos. Ele parece ser tão teimoso quanto eu.

— Papai é grato pelo que fez por ele. Ele me contou tudo — Vittoria murmurou. — Ele vai ficar bem com você! Ele também procura alguma coisa. Alguma coisa que não consegue achar aqui.

Ainda que ela tentasse esconder, uma tristeza transbordava de seus pequenos lábios:

— Eu vou ficar bem, as freiras vão cuidar de mim.

— Eu... eu prometo que... — o cavaleiro de túnica preta tentou ensaiar um novo juramento, mas logo foi interrompido pela garota:

— Não precisa prometer que vai trazer ele de volta! Eu sei que você vai. É pra isso que os cavaleiros servem, não é?

— Você só tem que se preocupar em crescer e continuar sendo uma boa menina! Bem desse jeito que você é — brincou o jovem, acariciando a cabeça loira da garota. — O resto quero que deixe comigo.

Vittoria não disse nada, ficou de pé e parou na frente de Kendrick. Suas mãozinhas tocaram os ombros do hospitalário, cobertos pela espessa malha-de-aço.

— Nunca gostei — ela sussurrou. — Nunca gostei de armaduras. Sempre me contaram histórias de cavaleiros de armadura que salvavam princesas. Mas toda vez que papai vestiu uma, foi pra fazer coisas erradas! Coisas que faziam ele chorar depois.

Vittoria ficou calada por um instante, e um vento mais forte soprou:

— Acho que ele fazia aquelas coisas por minha causa. Eu sei que ele pensa que eu nunca soube, mas... eu ouvia, eu ouvia ele chorar escondido.

Ela suspirou:

— Você tem o mesmo cheiro que ele.

Sentado na grama, Kendrick fitou os olhos cegos de Vittoria.

A garota começou a tatear o rosto do homem, para saber como ele era. Percebeu que o inglês tinha o queixo quadrado sem barba, face simétrica e que possuía uma falha na sobrancelha direita.

Enquanto o toque gentil lhe percorria o rosto, o hospitalário pensou nos sacrifícios que seu amigo Niccolo havia feito para criar e manter escondida a garota. O genovês havia trabalhado para os mais desumanos patrões e participado de um exército mercenário para custear as sangrias, as ervas medicinais e os tratamentos de sua filha: na vã esperança de prolongar a vida dela.

Por fim, assassinou um velho barão em troca de uma recompensa, fato o que o jogou nas masmorras e nas mãos da morte. Se não fosse por Kendrick, talvez o besteiro italiano não tivesse jamais a chance de ver sua filha de novo.

O cavaleiro não conseguia imaginar que tipo de sentimento paternal poderia mover um homem até tamanhas distâncias, nunca havia imaginado como seria ter filhos ou família devido a sua vida severa. Mas achava aquele sentimento admirável, e no fundo, ele também queria ter algo que pudesse proteger e lutar com a mesma intensidade e devoção do amigo italiano.

— Papai disse que você é forte — ela falou, quebrando os pensamentos de Kendrick. — Escutei as irmãs do convento dizendo que você é um herói, que salvou papai e muitas outras pessoas!

Definitivamente, Kendrick achava que aquela descrição não combinava com ele. Contudo não quis contrariar a garota meiga.

A menina tirou a fita verde de uma de suas tranças e amarrou-a graciosamente no pulso do hospitalário:

— Por favor, lembra de mim! Algum dia, me conta tudo das suas viagens. Papai é bom, cuida dele também...

Kendrick fez que sim, ao dizer:

— É claro! Eu vou protegê-lo. E quando eu voltar, contarei tudo sobre nossa aventura. Retornarei aqui amanhã antes de partir.

Ele se entristeceu, pois sabia que a menina gostaria de ouvir sobre os lugares e as pessoas que nunca veria. A saúde frágil de Vittoria estava piorando, e todos os médicos diziam que ela não atingiria a vida adulta.

Um chamado ecoou do bosque que cercava aquela encosta: uma das freiras gritava o nome de Vittoria. A irmã, trajada com hábito preto e branco, cumprimentou o cavaleiro em um gesto de reverência:

— Irmão Kendrick, que bom que está aqui! Insisto mais uma vez para que fique em nosso convento esta noite! Temos quartos vagos e também suprimentos doados pelos aldeões.

— Eu lamento — o cavaleiro disse em tom educado. — Mas como sabe, meu amigo dinamarquês desperta certo incômodo no retiro. Continuarei com ele na casa do lenhador que nos abrigou. Não é longe, e voltaremos aqui para nos despedirmos de Vittoria amanhã. Tenho certeza de que Niccolo irá querer isso.

A freira assentiu para o hospitalário e deu as mãos à garota, que acenando, ia voltando para o convento sob os cuidados da madre:

— Até amanhã, Kendrick!

— Até amanhã.

O rapaz ficou ali, em pé, com a mão sobre o cabo da espada embainhada, observando as duas figuras que partiam, até que sumissem em meio à trilha nos bosques esverdeados.

— Dizem que ela é fruto do pecado do italiano... — Uma voz austera se fez ouvida por entre algumas árvores. — Se ele não tivesse se envolvido com uma mulher que já era prometida a outro, a mãe da menina com certeza estaria viva e ela não seria tão doente.

— Isso não cabe a nós julgar, Thorkel — respondeu o hospitalário, ainda olhando para a trilha. — E você pode dizer o que quiser, mas eu sei que gosta muito da Vittoria. Ou acha que eu não o vi brincando com ela e a carregando em suas costas enquanto estávamos no convento hoje de manhã? Vocês pareciam estar se divertindo muito.

O nórdico de longos cabelos loiros, encabulado, preferiu não encarar o hospitalário. O dinamarquês era bem alto, estava revestido por uma armadura de placas que deixava seus braços musculosos nus, possuía um machado afiado que descansava em suas costas largas. Aquela expressão desconcertada destoava de seu porte ameaçador.

Thorkel estava vigilante, escondido na floresta o tempo todo, pois era paranoico quanto à proteção de seu amigo, que assim como ele, parecia sempre atrair todo tipo de problema.

— Espero que Niccolo consiga o tal barco para nos levar até a próxima cidade! — resmungou o guerreiro que agora saía de trás das árvores. — Dois dias e nada! Se aquele genovês for da mesma laia que todos daqui, aposto que vai nos vender, ou pior!

Thorkel não gostava daquela região que era tão diferente de suas montanhas gélidas. Não conseguia se adaptar ao clima, sentia o cheiro da traição serpenteando pelas vielas das cidades o tempo todo, via apenas o ouro reluzente nos olhares dos comerciantes gananciosos. Para ele, toda aquela aparente civilidade local era uma máscara que tentava esconder algum tipo de ardil.

Para tornar a situação ainda mais complicada, o dinamarquês não entendia muito bem aquela língua italiana que soava tão jocosa em seus ouvidos, e por conta disso, metera-se em várias brigas em Gênova. Felizmente, Kendrick interveio em seu favor para poupá-lo da forca da milícia genovesa, mas isso não impediu que o nórdico desenvolvesse uma fama inoportuna devido aos vários homens que surrou.

Os dois cruzados se viraram em direção ao mar no horizonte, e nuvens carregadas agora vinham com o vento: uma tempestade começava a encobrir as luzes do sol, como se fosse um mau augúrio da natureza.

— Venha, meu amigo — comandou Kendrick. — Temos que fazer os últimos preparativos antes que Niccolo chegue amanhã, partiremos para Reggio bem cedo.

— Ainda não acredito que você vai realmente trazer aquele italiano conosco! — rosnou Thorkel, contrariado. — E também não dá pra acreditar que tenha colocado a sua vida em risco pela dele!

Lembrava-se do incidente que os fez fugir de Gênova.

Após mais resmungos do guerreiro dinamarquês, os dois amigos seguiram em direção à trilha que adentrava nas florestas das colinas. Era possível ver a abóbada e as torres do Convento Beneditino da Paz ao longe. Em determinado ponto, quando desciam o caminho em direção ao sul, avistaram na distância a vasta cidade portuária de Gênova — como um tapete de construções banhado pelo oceano insondável.

Thorkel cuspiu no chão. Kendrick meneou a cabeça num gesto de reprovação para com a atitude do parceiro bravio.

Antes que a tempestade começasse a desabar sobre suas cabeças, eles chegaram até a casa de madeira do lenhador que os havia dado abrigo. Por ser um cavaleiro hospitalário em uma cruzada até Jerusalém, Kendrick contava com apoios fortuitos durante a jornada, já que muitos fiéis mais fervorosos queriam alimentar e abrigar os guerreiros abençoados da cristandade durante sua missão.

Trovões, que traziam mais do que uma tempestade, despertaram em Kendrick um incômodo, como se algo de ruim estivesse para acontecer naquelas colinas.

O sentimento que, volta e meia, imbuia sua alma quando ainda era um mercenário na floresta de York o visitou. Apenas ele sabia o quanto odiava aquela sensação de perigo. Por ora, preferiu não dizer nada para Thorkel.


Parte II

                Arte: Ivanice Stempozeckas


Existia em Gênova a área inferior das docas, conhecida como Baixo Distrito, lugar onde a lei da milícia, que servia aos duques governantes, não conseguia alcançar.

Era um poço de corrupção e ladroagem, onde mercadores que burlavam os impostos e contrabandistas atuavam livremente. Contraventores, assassinos e fugitivos de vários reinos mantinham qualquer cidadão bem-intencionado afastado.

Tavernas à beira dos píeres, com cheiro de maresia e peixe passado, espalhavam-se com suas janelas quebradas e iluminação de lamparinas enferrujadas. Bêbados e arruaceiros entoavam canções rudes e brindavam com canecas metálicas, marinheiros em busca de descanso e diversão agrupavam-se para fazer apostas e pequenos navios sorrateiros iam e vinham na calada da noite.

Nesse ambiente sórdido, sussurrava-se todo tipo de conspiração e planejamento criminoso. A noite estava fria e tomada por ventos provocados pela tempestade que se aproximava, balançando as velas dos barcos atracados e as placas de madeira dos estabelecimentos.

Quatro homens discutiam seus planos em uma das tavernas suspeitas: estavam sentados rodeando uma mesa de carvalho cheia de canecas de cerveja barata. Eram guerreiros caídos, que se esqueceram de seu orgulho e viviam rastejantes em sarjetas mal iluminadas.

— Não achei ele em lugar algum — queixava-se um homem magrelo, cujas vestes de couro estavam bastante surradas. — O sujeito é mais escorregadio do que um peixe! Depois que foi inocentado no ordálio presidido pelo bispo, desapareceu como um peido no vento!

— Tem certeza, Fulvio? — indagou outro homem soturno, um siciliano trajado em uma túnica que um dia foi branca. — Ele não tem pra onde fugir, o grupo mercenário pelo qual lutava foi desmantelado. Niccolo não tem apoio de ninguém na cidade, nenhum barco o transportaria, e existem muitos que querem a cabeça dele...

— Muitos. Como nós — completou um homem de armadura moldada em anéis, vestido por uma capa escarlate gasta. Tinha um trejeito nobre e erudito de falar, seu cavanhaque aparado e cabelos castanhos bem-cuidados mostravam que nem sempre ele havia sido um fora-da-lei. Tinha caído de muito mais alto do que todos ali.

— Mas signore Cesare, ele não está em lugar algum para ser achado! — sussurrou o esquálido Fulvio, que como um coelho assustado olhava para todas as direções, temendo ser ouvido. — Além do mais, dizem que aquele cavaleiro negro e o dinamarquês troglodita ainda podem estar por perto! O senhor viu que eles ajudaram Niccolo!

O líder do bando, Cesare De Angelis, pertenceu a Famiglia Ducale, um dos exércitos nobres de elite genovês. Sua desgraça foi súbita: assim que seu senhor feudal foi assassinado, o ex-nobre se viu expulso de suas terras pelo irmão mais novo de seu falecido senhorio, que o odiava por pelejas antigas. Todos paravam de falar para ouvi-lo com reverência:

— Não importa se o próprio diabo esteja contra nós, preciso destruir aquele maldito! Niccolo tem que pagar pelo que fez. E vocês já estão sendo bem recompensados para esta caçada. Portanto, nada de reclamações... eu elaborei um plano.

Fulvio e os dois irmãos sicilianos sabiam que, ao contrário deles, Cesare não queria ouro, pois estava atrás de vingança. Seu senhor recebera uma seta entre os olhos vinda da temível besta de Niccolo Vivarini, que era considerado o melhor atirador do norte da península, e foi justamente esse fato que havia desencadeado sua desgraça.

— Ouvi dizer que você e Niccolo eram amigos... — comentou um dos capangas sicilianos. — E que quando ainda eram nobres renomados, lutaram contra os germânicos em Bolonha.

Para Cesare, aquele parecia um passado distante como um sonho. O ex-nobre ajeitou sobre o ombro sua capa surrada de estimação, lembrança da glória de outrora:

— Sim, é verdade. Mas Niccolo caiu em desgraça sozinho, quando se envolveu com Alessa, a mais bela do mediterrâneo. Uma mulher prometida para um príncipe estrangeiro. Não satisfeito, o maldito tinha que me arrastar para sua ruína, assassinando meu senhor por um punhado de moedas. Nem mesmo eu pude prever que ele seria tão baixo. Tão desonrado. — Enfurecido, cerrou o punho sobre a mesa.

Cesare não acreditava o quão severa havia sido sua queda, agora estava obrigado a se aliar aos poucos homens que com ele desertaram e mais aqueles três infames bandidos: Fulvio, um besteiro amedrontado de Veneza, cuja habilidade só não superava sua covardia, e os irmãos Giacomo e Paolo, dois assassinos sedentos por sangue, banidos da Sicília. Eram tão impuros que até o mar os regurgitou, e os restos de seu barco naufragado os trouxeram para as costas de Gênova, onde mais uma vez voltaram a delinquir.

Como quem tentava apagar da mente as lembranças das glórias que não retornavam mais, o nobre caído virou a caneca para encher sua garganta de cerveja.

Limpou a boca com as costas da mão e disse:

— Escutem bem, seus cães! Eu disse que tenho um plano, e iremos executá-lo esta noite.

Curvou-se sobre a mesa e começou a conspirar com os comparsas:

— Subornei um mascate que viaja entre Gênova e Milão, e ele me contou do que precisamos para atrair Niccolo para nossa emboscada... e essa isca está em um convento em Colline della Pace.

Os três criminosos ficaram impressionados como seu empregador ainda tinha contatos e espiões em vários lugares.

— Mas e quanto o cavaleiro inglês e o dinamarquês bárbaro? — perguntou Fulvio, arregalado de medo ao se lembrar da fama dos dois.

— Isso mesmo! Cadê eles? — disse Paolo, enquanto virava mais um gole. — Por Deus! O cavaleiro negro colocou uma maçã na cabeça para que Niccolo atirasse nela com a besta a vários metros de distância! O homem é abençoado e não teme a morte! Sacrificou-se por um bandido que nem ao menos conhecia! Como ele podia ter certeza de que Niccolo não erraria!? Não seria alguém com quem gostaria de ter uma querela...

E Giacomo emendou:

— O tal dinamarquês abateu todos os homens da doca norte, quando...

— Calem-se! — esbravejou Cesare, batendo com o punho na mesa. — Mandei meus outros seis homens averiguarem. Os dois cruzados deixaram a cidade há dois dias, e Niccolo não seguiu com eles. Portanto, não teremos empecilhos.

Logo continuou, com ar determinado:

— Fui amigo de Niccolo por muito tempo e sei por que o cavaleiro inglês se colocou como alvo no ordálio. Ele decidiu participar do julgamento divino para que o bispo não usasse a filha de Niccolo em seu lugar! Pois aquele era o verdadeiro plano do bispo.

— Filha!? — Fulvio se impressionou. — Aquele bastardo tem uma filha? Como ninguém nunca ficou sabendo disso? Afinal ele nunca se casou...

— Poucos sabem. Esse é um assunto delicado que até a mais alta nobreza preferiu enterrar. Ela é fruto de um pecado que quase colocou alguns baronatos de Veneza e Gênova em guerra anos atrás. O que só não ocorreu devido a uma intervenção do Papa e um acordo entre os nobres.

E explicou amargo:

— O que importa é que o mascate me contou que ela está escondida sob os cuidados das freiras beneditinas no Convento da Paz. Como não conseguimos localizar Niccolo, teremos de usar esse último recurso para atraí-lo. Desesperado e sem apoio, ele virá.... e morrerá na minha lâmina.

Os outros três criminosos se entreolharam e em seguida gargalharam, divertindo-se com o plano maquiavélico de seu senhor. Brindaram, entornando cerveja sobre a mesa.

Enquanto todos riam e gabavam-se das torturas que iriam fazer com o besteiro mercenário, Cesare ficou calado, contemplando o fogo da lamparina. Nada dizia, pois sentia-se o pior dos homens, sabia que ele mesmo jamais se perdoaria por tudo que fizera desde sua queda, e que aquele ato final apenas selava a sua danação.

Tudo que conseguia pensar era que ao menos executaria a sua vingança, e a garota, cujo segredo ele havia jurado ao seu antigo amigo manter, não sairia ferida. Era o que importava.

Estava tudo planejado, Cesare sabia que poderia se deslocar com seus homens até o convento que estava desprotegido, pois afinal, poucos seriam loucos o suficiente para atacar um retiro cristão italiano, agora que Sua Santidade — o Papa — estava residindo em Roma.

A tempestade, que começava a cair com seus trovões, encobriria seus rastros. Porém, não seria capaz de lavar seus pecados.



Parte III


                           Arte: Ivanice Stempozeckas


Kendrick e Thorkel estavam sob o teto de um modesto celeiro, que ficava nos limites da pequena propriedade de um lenhador genovês. Em meio aos barris cheios de grãos, o dinamarquês estava deitado sobre a palha, fazendo suas orações noturnas.

O hospitalário reparou que o nórdico, embora parecesse à primeira vista rude e violento, sempre fazia suas preces com fervor e tinha grande apreço pelas tradições cristãs. Era notório que os dinamarqueses haviam emergido após longo tempo de seu estado pagão, e muitos dos homens dessa nação ainda mantinham costumes bárbaros advindos de seus antepassados vikings, fato que inspirava temor e superstição em seus inimigos.

O cavaleiro sabia que seu companheiro de viagem não era diferente de seus pares, e que tinha vindo de uma cidade muito distante, que ficava próximo ao que ele chamava de "topo do mundo", onde tudo que havia era gelo e a palavra cristã tinha chegado não fazia tanto tempo assim. Ele era fruto de uma mistura selvagem de honra, dever e barbarismo. Aquele homem possuía um imenso coração, apesar de seu aparente jeito grosseiro. Kendrick o admirava.

A chuva e os raios da noite assustavam o cavalo de Kendrick, um robusto garanhão negro que relinchava sem parar: estava amarrado em uma baia improvisada e protegida. O rapaz acariciava a fronte do animal para acalmá-lo, enquanto goteiras se formavam por entre as tábuas do teto e os trovões retumbavam no exterior do celeiro.

Os dois cruzados haviam barrado a porta por dentro com uma pequena carroça, e suas armaduras e utensílios de viagem estavam empilhados em um canto sobre o feno. O barulho da chuva tomava o ambiente e Kendrick continuava com a sensação de que algo estava errado, aquele augúrio não lhe deixava dormir.

Bem quando se acomodou sobre o assoalho para descansar, foi que ouviu um batido forte na porta e uma voz feminina desesperada chamando seu nome:

— Sir Kendrick! Sir Kendrick!

Os dois guerreiros se colocaram de pé rapidamente e removeram a carroça que emperrava a porta. As rodas rangeram e enfim a entrada foi desbarrada.

Viram diante deles a freira que levou Vittoria de volta ao convento naquela tarde, ensopada pela chuva e ofegante devido ao cansaço:

— Irmão Kendrick! — arfou ela. — Mercenários armados! Eles... eles... acabaram de invadir o convento!

— O que ela disse!? — Thorkel perguntou com ansiedade, já que não entendia direito aquela língua.

Enquanto o cavaleiro tomava o cuidado de observar que a irmã não estava ferida, apenas cansada e assustada, ele falou preocupado:

— Thorkel, parece que estão atacando o convento! — E comandou: — Vamos até lá! E Irmã, por favor, fique aqui.

Os cruzados vestiram suas armaduras o mais rápido que puderam. O dinamarquês, enquanto colocava seu machado nas costas, vociferava e xingava em sua língua natal, com palavras que afrontavam o firmamento.

Kendrick ficou silencioso, embainhou a espada e montou em seu cavalo, Thorkel subiu atrás. A freira se apoiou ofegante na parede do celeiro e observou os dois guerreiros galopando sob a tempestade noturna.

O cavaleiro vencia os morros obscuros sobre as patas grossas do garanhão negro, acompanhado de seu amigo nórdico. Poupou as rédeas, deixando que os raios iluminassem ocasionalmente o caminho até o retiro.

Ao finalmente chegarem aos portões derrubados, avistaram o convento tomado pelas trevas em meio à chuva que dificultava a visão; de sua abóbada e de suas torres escorria água e a escadaria branca estava tomada por destroços da porta interna. Naquele momento, parecia um lugar desolado e mal-assombrado.

Desmontaram e empunharam suas armas: Kendrick sua longa espada e escudo, Thorkel, seu machado afiado. Adentraram no salão central se movendo com cautela. O tilintar de suas armaduras molhadas ecoava pelos corredores vazios — todos do lugar haviam fugido. Imagens e candelabros haviam sido derrubados, e até mesmo a cruz de prata do altar foi roubada.

— Blasfêmia! — vociferou o nórdico. — Que malditos fariam uma coisa dessas? Sua Santidade, o Papa, não dorme muito longe daqui!

— Eu não sei. Mas fique atento — disse o cavaleiro, que tinha fúria no olhar, revelado por entre as duas fissuras de seu elmo fechado. — A tempestade calou o barulho da invasão, e mesmo que as irmãs e os monges tenham corrido em direção à cidade para buscar ajuda, a trilha até lá é longa. Este ataque foi muito bem premeditado.

— Eu vou mostrar os planos premeditados que tenho para esses malditos! — rosnou Thorkel.

A conversa dos cruzados foi interrompida por um eco vindo de um dos corredores, que lembrava o de um objeto metálico caindo no chão. Eles se viraram empunhando suas armas na direção do som.

Suas visões lançaram-se em direção ao final de uma galeria, onde um homem encapuzado foi revelado pela luminosidade repentina de um raio, que brilhou na tempestade lá de fora. O sujeito tinha uma besta na mão e um saco de couro nas costas — de onde caiu a cruz de prata roubada do altar. Foi justamente aquela peça que fez o alarde ao tilintar no assoalho e denunciou o ladrão. Ele tentava se esgueirar para fugir por uma janela.

Ao ser surpreendido, o besteiro furtivo mirou a arma para Thorkel, e a ponta maliciosa da seta engatilhada visou o peito do nórdico, e logo voou zunindo no ar. Kendrick, por ato reflexo, jogou-se na frente de seu companheiro e bloqueou-a com o escudo: o quadrelo fincou até a metade, revelando sua ponta do outro lado da proteção.

O bandido não teve tempo de atirar uma segunda vez, estava trêmulo e surpreso, e bestas eram engenhocas demoradas para recarregar. O cavaleiro lançou-se com velocidade na direção do larápio e talhou-lhe a fronte com um corte diagonal; sangue lavou as paredes e a lâmina prateada, e o bandoleiro tombou esfacelado.

— E ainda dizem que existe uma proibição papal sobre o uso de bestas contra outros cristãos... — Kendrick comentou enraivecido, com a voz abafada pelo elmo enquanto observava o quadrelo fincado no escudo. — Temos que achar Vittoria!

— Parece que esses italianos gostam de usar essa arma profana! — reclamou Thorkel, que não era tolo e sabia da praticidade e letalidade do armamento. Tinha consciência de que se tivesse sido atingido, sua armadura poderia não lhe salvar a vida da ponta perfurante da seta. — Do que adiantam todo esses modernismos e riquezas, se eles não têm honra?

E quebrou a besta caída ao chão com a sola da bota.

Vasculharam o convento por inteiro, tudo indicava que os bandidos haviam ido embora e aquele criminoso tombado era um último infeliz, que ficara para pilhar mais do que devia.

Não havia rastros de sangue nos aposentos e nos salões para alívio do cavaleiro, não existiam sinais de batalha. Por fim, pregado atrás do altar, havia um bilhete que foi achado por Thorkel.

— Kendrick, aqui — disse o dinamarquês, entregando-lhe a carta. Ele admirava o fato de o hospitalário ler, escrever e falar em seis línguas diferentes, não entendia como aquele homem conseguia saber de tanta coisa e ao mesmo tempo lutar tão bem.

Era uma nota de duelo. Durante a procura no convento, Kendrick torceu para que Vittoria estivesse a salvo, foragida com as freiras que já deveriam ter atingido Gênova ou algum vilarejo próximo. Mas aquela não era a realidade e o mau augúrio do cavaleiro provou-se verdadeiro: a carta explicava que a garota havia sido levada pelos bandidos, e estes exigiam que Niccolo Vivarini se dirigisse até um castelo abandonado ao norte da província, ou eles matariam sua filha.

— Maldição... — o hospitalário suspirou.

Os dois cruzados saíram do convento deserto e voltaram até a entrada, pisando sobre os portões caídos. De lá via-se a chuva castigar as colinas e as trilhas abaixo. O breu era espesso, assim como as gotas que despencavam.

— Niccolo só vai retornar amanhã — disse Kendrick, removendo seu elmo e a malha-de-aço da cabeça. — Tenho certeza de que se decidirmos ir com ele até o local indicado pela carta, será um massacre. Não apenas estaremos em desvantagem numérica, como eles estarão prontos para nos receber. Será uma armadilha infalível.

— Por que não avisamos aqueles imprestáveis da guarda genovesa, hein?! — bradou Thorkel, para fazer-se ouvido em meio aos trovões da noite. — O convento foi atacado, até mesmo eles irão se revoltar com isso!

— Esqueça – negativou o cavaleiro. — Niccolo foi banido de Gênova pelo assassinato daquele barão, e só não foi morto porque o ordálio o livrou da forca. Já corre grande risco por estar nas redondezas tentando garantir nossa viagem até Reggio, e a menina era um segredo que quase ninguém conhecia. Definitivamente, não podemos informar a milícia...

Os dois ficaram em silêncio por um tempo, Kendrick olhou desalentado para a fita verde amarrada na sua manopla:

— Se conseguíssemos segui-los até seu covil... se ao menos eu não tivesse matado aquele último bandoleiro... — arrependeu-se, chutando uma pedra que rolou morro abaixo. — Talvez poderíamos ter extraído alguma informação dele!

Thorkel, por sua vez, com seus cabelos longos e loiros ensopados, tocava a relva ao redor da entrada com a ponta dos dedos. Andava de um lado para o outro, como um lobo da floresta, procurando sinais dos bandidos fugitivos. Por mais que detestasse admitir, daria sua vida para garantir a segurança da garota, e aquele sequestro covarde pareceu atiçar ainda mais seus sentidos.

— Thorkel... — murmurou o cavaleiro, trazendo pela rédea seu cavalo que tinha ficado ali na entrada. — Eles agiram hoje de propósito. A tempestade encobriu todos os rastros, só um milagre para achar alguma pegada nessa chuva toda!

O nórdico não disse nada, e abaixou-se rapidamente por um instante, analisando o solo, lembrando-se do tempo em que caçava ursos em meio às montanhas nevadas, munido apenas de sua habilidade e uma lança de madeira.

Por um bom tempo, ficou ajoelhado observando a relva.

O hospitalário o olhava sem entender.

Em seguida, o nórdico abriu um sorriso sanguinário, dizendo finalmente:

— Esses cães... — Foram palavras pronunciadas por entre os dentes rangidos de ódio: — Eles não sabem com quem estão lidando. Não se mandam cachorros provocarem lobos!

Kendrick compreendeu imediatamente o que seu amigo falava. Uma nova esperança brotou em seu coração. Ele apertou o cabo da espada, ajustou-se na túnica molhada sobre a malha de aço, e então um relâmpago iluminou a silhueta dos dois guerreiros.

— Me siga! — disse Thorkel.

Os dois cruzados rumaram pelos bosques escurecidos, esmagando a lama sob suas botas. A obstinação agora guiava cada movimento deles.



Parte IV


                         Arte: Ivanice Stempozeckas


Já era madrugada alta e a tempestade continuava a cair sem dar sinais de que pararia. Após seu bem-sucedido ataque ao convento, Cesare e seus homens cavalgaram pelos bosques até seu esconderijo — um dos únicos casebres ainda de pé do abandonado vilarejo de Acqua Gialla.

Lugarejo que foi atingido por uma praga meses atrás. Todos os habitantes que não haviam morrido, tinha fugido, e o local era considerado amaldiçoado. Uma fama oportuna que o tornava perfeito para os fora-da-lei.

— Amanhã partiremos para as ruínas do Castello di Nebbia — disse Cesare para seus três infames bandidos. — Lá, no local marcado, o assassino encontrará seu destino. Descansem bem! Meus outros homens estão de guarda pelos destroços desta miserável vila e a milícia jamais nos achará nesta noite tempestuosa.

Os criminosos e a pequena Vittoria estavam alojados no sobrado aos pedaços, repleto das mais variadas quinquilharias, frutos das pilhagens e do roubos de caravanas. Suas tábuas fediam a mofo e a água que penetrava pelo teto apenas aumentava a umidade do local, o chão era formado por madeira manchada e tochas iluminavam doentias o lugar.

Fulvio, Paolo e Giacomo acomodaram-se no feno jogado pelo pavimento, e mais uma vez, começaram a beber, caçoando das faces assustadas das freiras do convento que atacaram.

Cesare De Angelis ficou ainda mais taciturno, consumido pela ansiedade. Pensou que talvez seria hora de refazer sua vida, depois de executada sua vingança.

Vittoria estava caída entre as pilhagens, como se mais um objeto roubado fosse: seus vestidos brancos estavam sujos de lama e suas tranças loiras tinham sido desfeitas pela chuva. Não estava amarrada, pois não representava nenhum perigo de fuga. Aquele lugar fétido era para seu olfato sensível como estar dentro de uma caverna pútrida cheia de morcegos. Ela ouvia vozes e tilintar de armas, desesperava-se por não conseguir determinar o quão longe estava do convento. Lágrimas escorriam de seus olhos cegos e suas tosses pioravam, pois tinha sido exposta à chuva e ao vento enquanto era carregada rudemente pelos homens de Cesare.

— Onde está Fausto? — indagou Fulvio, paranoico como de costume. — Ele não havia ficado para deixar o bilhete e coletar as pilhagens do último andar do retiro?

— É, ele está demorando — replicou Paolo, afiando uma faca de açougueiro com uma pedra. — O que pode ter acontecido?

O siciliano sombrio foi interrompido pelas tosses cada vez mais altas da garota, e o matador começou a ranger os dentes de irritação.

— Essa garota é amaldiçoada! — praguejou Fulvio. — Vamos jogá-la no rio quando terminarmos isso! Deixemos que ela envenene os peixes!

Paolo cobriu-se com sua capa encardida para afastar o frio e se levantou. Foi até a garota soluçante caída no chão, abaixou-se manuseando a faca reluzente e a aproximou do rosto delicado da menina chorosa:

— Talvez devêssemos deixá-la com algumas marcas... — Um sorriso maléfico se manifestou em sua face. — Apenas para desesperar o pai ainda mais quando a vir. Que tal?

O siciliano apenas sentiu uma bota pesada chutar-lhe o rosto, fazendo com que fosse lançado para trás violentamente. De seu nariz quebrado vazava sangue grosso, e ele o tampou com a mão na vã tentativa de estancar o ferimento:

— Maldição! Por que fez isso, meu signore?! — balbuciou o assassino caído perante seu líder.

— Vermes, se algum de vocês ousar tocá-la... — ameaçou Cesare, de pé, com a bota direita manchada de rubro e de espada na mão. — Irão receber o julgamento divino mais rápido do que imaginam.

Nenhum dos três moveu um dedo, eles sabiam que o nobre caído era um veterano de guerra, e que ele poderia facilmente abater todos ao mesmo tempo sem esforço.

Os bandidos tentaram recompor-se do medo experimentado. E Cesare curvou-se para analisar o estado da menina. Vittoria teve a impressão de que já tinha ouvido aquela voz em algum lugar antes, mas ela não era tão ameaçadora e rude em suas vagas lembranças.

Existia para ela, em meio a todos aqueles odores fétidos, um cheiro muito familiar, que era marcante o suficiente para que ficasse guardado no fundo de suas memórias. Só que ainda não tinha certeza o que era.

O ex-nobre tirou a luva e sentiu a testa de Vittoria com a palma da mão: ela ardia em febre, fato que o deixou ainda mais perturbado. Em seguida, removeu sua capa vermelha e envolveu a garota para mantê-la aquecida.

Os olhos cegos de Vittoria se arregalaram, pois era a capa que exalava o cheiro tão familiar. Aquelas peles de lebre, que formavam seu acolchoamento, fizeram-lhe relembrar do tempo em que seu pai recebia visitas de um velho amigo:

— Tio Cesare! É você!? — a menina perguntou, soluçante de pavor e decepção.

O coração de Cesare enrijeceu e o último de seus medos se tornou real: ele foi reconhecido e teria que matar a garota assim que sua vingança se consumasse. Era o pior pesadelo possível.

— Isso tudo irá acabar logo, minha principessa — ele suspirou pesaroso para Vittoria, tocando-lhe o queixo. Em seguida ordenou: — Fulvio! Ordenei meus outros homens da patrulha para que reportassem aqui de tempos em tempos, mas até agora eles não retornaram. Vá ver como eles estão!

— Agora, senhor? — A voz do besteiro esquálido, de nariz adunco, era cheia de receio.

— Sim! Agora, seu tolo! — esbravejou Cesare. — Paolo e Giacomo, durmam! Amanhã será um longo dia...



Parte V


                         Arte: Ivanice Stempozeckas


Fulvio deixou a casa reclamando, cobriu-se com um capuz grosso e saiu em meio à tempestade da madrugada.

A vila abandonada formava-se como um cenário sobrenatural para o covarde que tentava captar cada detalhe ao redor: com suas casas quebradas e janelas que balançavam aos ventos, ervas daninhas que cresciam invadindo as ruas de pedra, moinhos de vento que rodavam fantasmais.

— Ei! — chamava, cobrindo a boca com as mãos. — Onde estão vocês, seus patifes?!

A voz do sujeito ecoava fraca em meio aos trovões.

Continuou caminhando sobre a lama das ruelas, seguindo à procura dos outros empregados de seu senhor. Até virar uma esquina e sem querer, chutar um objeto metálico que estava jogado ao chão.

O coração do criminoso quase parou e ele sentiu os pelos de sua nuca arrepiarem-se por debaixo do capuz: ao ver que havia chutado um elmo ensanguentado de um dos homens que buscava.

Mirou seu olhar temeroso adiante, apenas para ver o último dos vigias rastejando junto de uma pilha de cadáveres, tentando inutilmente evitar a pata grosseira de um cavalo negro, que desceu subitamente sobre sua cabeça, esmagando seu crânio.

Um cavaleiro, agigantado perante a covardia do besteiro que o observava, postava-se montado envolto pelas águas que caiam do céu. Um raio iluminou sua silhueta escura: munida de armadura e elmo fechado, dos furos de seu capacete vazava vapor devido ao frio da madrugada; em sua espada havia sangue fresco, e a túnica preta o fazia parecer um dos Cavaleiros do Apocalipse, que ali estava para anunciar o Juízo Final.

Fulvio gritou desesperado e sacou sua besta. Mirou-a de forma trêmula lembrando-se de que nem o quadrelo assassino de Niccolo conseguiu atingir aquele hospitalário no ordálio. Disparou a seta quase às cegas, fazendo-a zunir longe de Kendrick, que continuou imóvel, fitando enigmático seu adversário.

Aquilo era demais para o covarde criminoso aguentar. Ele se virou para correr em direção ao casebre, com o objetivo de avisar seu patrão, mas trombou no que parecia ser uma muralha e foi ao chão lamacento.

Ao olhar para cima, apenas pôde ver a figura de um nórdico enorme, com olhar azul feroz, descendo seu machado afiado sobre seu torso, e partindo-o ruidosamente. Mais sangue misturou-se as águas que escorriam pelas vielas imundas, e o ruído de costelas sendo abertas reverberou.

Um grito de agonia inominada espalhou-se pela vila assombrada.

Cesare, Giacomo e Paolo se levantaram num pulo ao ouvir aquele horrendo som, e prepararam-se como podiam.

 — Estejam prontos! Fiquem juntos, seja lá quem for não demorará para encontrar esta casa! — ordenou Cesare, desembainhando sua lâmina e levantando um escudo com brasão nobre apagado. Os dois irmãos sicilianos empunharam seu aço e permaneceram imóveis.

Por um tempo, que pareceu durar horas, mantiveram-se estáticos ouvindo apenas a chuva, o cair das goteiras e os trovões. A tensão engrossava a atmosfera do ambiente. Vittoria ficou ainda mais assustada e abraçou os próprios joelhos por debaixo da capa escarlate que a cobria. Não conseguia imaginar o que estava acontecendo, mas o grito de dor que ecoou parecia colado em seus ouvidos aguçados.

O silêncio se desfez quando a porta de carvalho do casebre foi ao chão com um só golpe, revelando o hospitalário e o dinamarquês, ambos com suas armas lavadas em sangue.

            — Acabou — o cavaleiro deu a sentença.

Paolo empunhava a faca de açougueiro, mas estava descrente na vitória, e ao ver a morte de perto se lançou na direção da garota para colocar a lâmina em seu pescoço, pois talvez assim, os cruzados desistissem de sua investida.

Como um animal arisco, Thorkel percebeu o movimento do bandido e jogou-se para interceptá-lo, desferiu um soco bruto com sua manopla, fazendo os dentes do siciliano voarem junto a uma nuvem rubra. O assassino tombou com os lábios destruídos e o pescoço quebrado; convulsionou por um momento e depois quedou-se imóvel. Estava enfim morto. Seus olhos arregalados de pavor miravam o teto do casebre.

Kendrick encarou, através das duas cavidades de seu elmo, o homem que parecia ser o líder. Havia na face do criminoso um semblante diferente de todos os bandidos que matara até chegar naquela casa. Ele tinha uma nobreza em sua postura apesar da armadura velha e da falta de polimento na espada desembainhada. O hospitalário percebeu que o homem tinha alguma honra, mas não podia deixá-lo viver.

Era hora de terminar com tudo aquilo:

— Thorkel, cuide do outro. O líder é meu.

Giacomo enfureceu-se ao ver seu irmão tombado pelas mãos rudes do nórdico, e brandindo sua espada por sobre a cabeça como um louco, tentou rasgar com golpes sucessivos o oponente, que se esquivava da morte sibilante no ar úmido.

Kendrick e Cesare correram como touros bravios, um em direção ao outro; os escudos se bateram retumbantes e os braços dos dois oponentes se retesaram devido ao choque.

Logo, aço encontrava aço e os dois guerreiros se digladiavam destruindo as tábuas podres das paredes ao redor. Fazendo com que as quinquilharias espalhadas fossem esmagadas perante seus pés, que se moviam rápido para fazer seus corpos saírem da direção dos cortes que assobiavam.

Thorkel, ao ver a guarda aberta do siciliano espumante, que golpeava na tentativa de eviscerá-lo, sussurrou apenas:

— Vá pro Inferno...

E cortou horizontalmente o pescoço de seu oponente com o pesado machado, fazendo a cabeça cair dos ombros com uma feição dura e empalidecida. As paredes foram banhadas e uma poça escarlate se formou no madeirame do chão.

O cavaleiro ergueu sua espada preparando um golpe preciso, e Cesare, com seu treinamento refinado, esperava aproveitar a abertura que aquele movimento iria lhe proporcionar após apará-lo. Porém, a espada do ex-nobre inesperadamente cedeu e quebrou-se diante do corte impelido pelo hospitalário, que lacerou o ombro direito do italiano. Os anéis da armadura velha, tomados pelo carmesim sanguíneo, desprenderam-se e tilintaram.

Cesare caiu de joelhos, largando o escudo e os restos da espada, e sua última ação foi lançar o olhar para a menina Vittoria, que ainda estava deitada enrolada em sua capa. Agradeceu aos céus por ela estar a salvo. 

Kendrick percebeu aquele arrependimento do ex-nobre, fechou os olhos, e assim perfurou com a espada o peito e o coração do oponente, dando-lhe a morte mais rápida que pôde conceber. Tinha consciência que havia matado um igual naquela noite.

Fez-se o silêncio e a tempestade lá fora se acalmou.

Os dois cruzados correram sobre os corpos em direção a menina que chorava. Quando se aproximou, Kendrick tirou o elmo e o jogou no chão. Viu Vittoria tentando se levantar e tateando confusa, e ele a abraçou com toda a ternura que ainda lhe restava na alma calejada.

Enquanto nos braços acolhedores e armadurados do cavaleiro, lágrimas e mais lágrimas escorriam dos olhos claros e fixos da garota.

Ela nunca acreditou que estaria tão feliz em sentir novamente aquele cheiro que tanto odiava: o cheiro misturado de suor, sangue e aço.

 

FIM